Olhar 360

A Cabocla Selma

Foi numa dessas levas que a cabocla Selma partiu. Não disse adeus, nem olhou pra trás. O povo ficou calado, mas os olhos, ah… esses gritaram. Gritaram baixinho, como quem não quer que o vento escute. Selma era daquelas que fazia o tempo parar.

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No seu andar firme, havia força de rio cheio, e nas suas mãos, a leveza de quem conhece a luta. Ninguém sabe ao certo o que a levou embora. Uns dizem que foi o sonho de ver o mundo além da palha. Outros falam que foi o destino, que não aceita cabocla feliz demais.

Depois que ela foi, a casa de palha perdeu a cor. O vento que antes cantava nas folhas agora só assobia tristezas. E eu, que sempre me fiz de forte, dei de me perder nas lembranças dela.

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No café forte, na farinha espalhada na mesa, e no cheiro de rio que Selma levava no cabelo. Às vezes, à noitinha, quando o silêncio é maior que a solidão, eu garro a imaginar. Imagino ela voltando, descalça, sorrindo, com um feixe de flores brancas no braço. O povo ia dizer: “Olha lá, a Selma voltou!” E eu, que nunca soube esconder sentimento, ia deixar escapar um riso besta, daqueles que entregam o coração.

Cabocla Selma e a Saudade que Ficou

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Foi numa dessas levas, de rio baixo e céu queimando de sol, que a cabocla Selma se foi. Deixou só o rastro dos pés na terra molhada e o cheiro de mato fresco que ainda hoje parece morar aqui. Ninguém soube direito o motivo. Uns disseram que foi o chamado do mundo de cimento e luzes fortes. Outros acham que foi o destino, desses que arrasta gente valente para longe de casa.

A casa de palha nunca mais foi a mesma. O silêncio tomou conta do terreiro. Até o vento, que antes brincava com as folhas secas, hoje só faz um assobio triste, fininho, de cortar o coração. No fogão de barro, o cheiro de café forte não tem o mesmo gosto, e o murmúrio das águas do igarapé parece chorar baixinho toda vez que a noite cai. Selma era de presença cheia, daquelas que não precisa falar muito. Era o riso que fazia a roda girar, a voz que puxava o canto enquanto o feijão cozinhava na panela de ferro.

Quando ela falava, as palavras saíam mansas, mas certeiras. Todo mundo ouvia. Era consolo e conselho no mesmo tom. Mas quando queria, também sabia ser tempestade. “Cabocla que não enfrenta o mundo, vira folha seca no vento”, ela dizia.

Agora, sem Selma, cada canto da casa tem um pedacinho dela. A esteira encostada na parede ainda tem o cheiro do óleo de andiróba que ela passava nas pernas. A cuia que ela usava para beber água, pendurada num prego enferrujado, balança devagar, como se o tempo ainda esperasse ela voltar.

Eu garro a imaginar… Às vezes, na beira da rede, fico de olhos fechados, vendo Selma chegar. De vestido florido, cabelo preso com um pedaço de pano vermelho, o mesmo que ela usava pra enxugar o suor. Vejo ela rindo, ajeitando o pote d’água na cabeça, falando alto com as galinhas que insistiam em bicar o terreiro. Vejo tudo isso como se fosse real, mas abro o olho e nada. Só o vazio da tarde se esticando até o fim do dia.

A saudade, essa danada, não avisa quando chega, nem quando vai embora. Ela se esconde nos cheiros, nas músicas, no canto dos bichos, e ataca quando a gente menos espera. Tem hora que eu penso que ela vai embora, mas não vai. Saudade de cabocla não se cura, só se convive. É como dor de espinho no pé: você acostuma a andar com ela, mas, de vez em quando, lateja.

A última vez que falaram de Selma foi o compadre Bené, que disse ter visto ela na beira de um cais, vendendo açaí pro povo da cidade. Disse que ela tava bonita, de roupa nova e olhar decidido.

Quando perguntou se ia voltar, Selma deu uma risada só e disse: “Cabocla que volta sem ter o que contar, volta pela metade. Deixa eu ajeitar o mundo primeiro.” E eu fiquei aqui, com o peito apertado e o olho cheio d’água. Porque o mundo de Selma sempre foi a gente. E ela ainda não voltou.

por Almir Souza-Redator Hacker Free Lancer
Fonte Redação Fama
Foto Selma Carvalho

Almir Souza

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